A vitória do candidato ultradireitista Javier Milei para presidência da Argentina, no domingo (19), levantou dúvidas em relação ao futuro das relações diplomáticas e econômicas entre Brasil e Argentina devido a posturas do candidato ao longo da campanha. Milei defendeu a saída da Argentina do Mercosul, mas depois recuou e passou a defender apenas mudanças no bloco econômico, que reúne também Uruguai, Brasil e Paraguai.
Milei disse também que não faria negócios com o Brasil, nem com a China, os dois principais parceiros comerciais da Argentina, e ainda fez duras críticas contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lançando dúvidas sobre as relações entre os dois países. A Argentina, afinal, é o terceiro principal destino das exportações brasileiras, perdendo apenas para China e Estados Unidos.
Para entender como a vitória do político ultraliberal pode afetar as relações com o Brasil, a Agência Brasil ouviu especialistas que estudam a América Latina.
Para o professor Nildo Ouriques, a relação entre Brasil e Argentina, dada a dependência entre os dois países, não deve ser alterada. O presidente do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (Iela-UFSC) defendeu que a política é feita de atos, não de declarações.
“Uma campanha eleitoral na América Latina não tem a menor importância prática se você não vincular as declarações com os atos. Vamos ver o que o Milei vai fazer, mas será muito pouco. O Mercosul é o paraíso das multinacionais. Por isso mesmo, o bloco não corre nenhum risco. Acha que Lula ou Milei vão se enfrentar com as multinacionais? De jeito nenhum. Das 15 maiores empresas do comércio entre Brasil e Argentina, 13 são multinacionais”, explicou.
Ouriques acrescentou que as relações comerciais vão depender das condições econômicas dos dois países. “Pode aumentar o comércio do Brasil com a Argentina de Milei se for de interesses das multinacionais e dos comerciantes argentinos. O resto é discurso, é a arte de iludir necessária para processos eleitorais”, destacou.
O cientista político argentino Leandro Gabiati destacou que aliados e assessores do futuro presidente da Argentina, apesar de afirmarem que ele não terá relação pessoal com o presidente Lula, afirmam que haverá contatos institucionais via Itamaraty ou ministérios.
“Ainda que os dois presidentes não conversem diretamente, há interesses em comum que farão com que as relações entre os dois países continuem relativamente normais. Enxergo como algo parecido com o que aconteceu entre o ex-presidente Bolsonaro e o presidente argentino Alberto Fernández. Os dois não dialogaram durante suas gestões, mas muita coisa continuou avançando”, ponderou.
Gabiati acredita, porém, que medidas de teor liberal, ainda que não tire a Argentina do Mercosul, pode enfraquecer o bloco. “Não será uma relação fácil entre Argentina e Brasil, mas não se chegará ao radicalismo de tirar a Argentina do Mercosul porque isso traria sérios impactos para economia e indústria argentina”, afirmou.
O professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) Giorgio Romano Schutte ressaltou que ainda é cedo para avaliar como ficarão as relações entre os dois países, mas acredita que o comércio não deve ser alterado.
“As relações comerciais são feitas por atores econômicos. Isso não deve sofrer tanto. O comércio vinha sofrendo por causa da situação econômica na Argentina. Agora, há um fato de incerteza, que é de como os investidores vão avaliar a eleição. Mas a tendência é que as relações comerciais existentes não devem sofrer tanto assim”, ponderou.
Sobre o Mercosul, Schutte avaliou que Milei pode tentar mudar as regras, mas que caberá ao Brasil resistir. Além disso, destacou que as propostas do atual governo do Brasil de revitalizar a integração latino-americana devem ser prejudicadas, devido a postura do futuro presidente argentino. “Essa ideia de fortalecer a inserção brasileira no mundo por meio de uma integração latino-americana vai ficar muito difícil”, acrescentou.
A pesquisadora do Observatório de Política Externa e da Isenção Internacional do Brasil (Opeb) Audrey Andrade Gomes destacou que a vitória de Milei deve reduzir a coesão do Mercosul e interferir no Brics, bloco econômico que o Brasil participa e reúne potências emergentes, como China, Rússia, África do Sul e Índia e que, recentemente, incluiu a Argentina no bloco.
“Talvez ele não consiga cumprir suas promessas de campanha, como a distância que ele quer manter com a China e o Brasil. Ele não tem como se desvencilhar dos principais parceiros da Argentina. Mas, ainda assim, ele pode criar problemas de integração que dificultem a coesão e solidez do Mercosul. Mas o problema maior é o Brics, porque esse bloco tem proposta de usar outra moeda para transações comerciais que fujam ao dólar e essa não é a proposta do Milei”, afirmou. Milei defende que a Argentina adote o dólar estadunidense como moeda nacional do país.
Alçado à fama como comentarista econômico em programas de televisão, Javier Milei ganhou apoio de políticos da direita tradicional no segundo turno, como o ex-presidente Mauricio Macri e a candidata derrotada Patricia Bullrich.
O futuro presidente argentino define-se como libertário e anarcocapitalista e declarou-se defensor de ideias como a comercialização de órgãos e a livre venda de armas. Ele promete dolarizar a economia e extinguir o Banco Central argentino para acabar com a inflação. Porém, no segundo turno, ele amenizou promessas anteriores, prometendo não mais privatizar a saúde e as escolas públicas.
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